A morte / Foto: Divulgação
Minha morte nasceu quando eu nasci
Despertou, balbuciou, cresceu comigo…
E dançando de roda ao luar amigo
Na pequenina rua que vivi.
(A RUA DOS CATAVENTOS XIX – QUINTANA, 2005)
A Morte
Os seres humanos nos mais diferentes contextos e tempos, sempre foram convocados a pensar na morte, como sujeitos de passagem que são. A morte é uma constante no imaginário das pessoas. Tanto pode ser uma entidade vestida de negro com uma foice na mão a ceifar vidas, como pode ser uma luz no fim de um túnel, onde se encontra a paz eterna.
A tanatologia é uma área do conhecimento científico implicada com o estudo da morte, um fato de difícil representação psicológica. Ela envolve trabalhos em cuidados paliativos, acompanhamento de pacientes com doenças incuráveis, apoio a equipes de saúde que atendem pacientes que se encontram fora de qualquer possibilidade de tratamento, aconselhamento a familiares destes mesmos pacientes, enfrentamento do luto, eutanásia, suicídio assistido, comportamento suicida, comportamento autodestrutivo, entre outros.
Nos tempos atuais, com o confinamento em hospitais e o afastamento do convívio familiar, a morte se tornou um “desaprendizado”, ou seja, o que outrora era natural e fazia parte do cotidiano se transformou em um fenômeno temido e evitado; o que antes era próximo foi afastado e o que era esperado, agora, é inesperado. Ela deixou de ser uma experiência compartilhada.
A história humana, desafios, conceitos e preconceitos diante de sua finitude
Na antiguidade
Por muito tempo, o ser humano via a morte como parte integrante de seu cotidiano; convivia com ela de forma natural e, em muitos casos, celebrava-a como dádiva dos deuses. Os mortos eram enterrados no próprio terreno da família, pois se acreditava que, tornando-se sagrado o solo, os deuses abençoariam suas colheitas. A passagem do mundo dos viventes para o mundo dos mortos era entendida como extensão da própria história do falecido. O mundo dos vivos coexistia com o mundo dos mortos, portanto, morrer não era considerado fracasso, era o ápice da vida em continuidade.
A vida produzia a morte que produzia a vida. Embora complexos, esses fenômenos podem ser assim compreendidos: quando o ser vivente deixava esse mundo natural, seus corpos se tornavam sustento para a terra, produziam vida. Esse ciclo contínuo se repete ininterruptamente: o corpo se decompõe e se recompõe. Da morte surge a vida que se alimenta da morte.
Na Idade Média
Mais à frente, durante a Idade Média, em especial, um novo componente surge na cultura ocidental, um ser supremo, onisciente, onipresente passa a ter o domínio da vida e da morte. A passagem natural para o mundo dos mortos sai do domínio humano e se apresenta no mundo da dádiva divina.
O homem, para merecer uma boa morte, precisa cumprir uma série de normas durante toda a sua estada na terra, para assim, e somente assim, merecer a sua morada dentre os mortos.
O abismo criado entre a vida e a morte precisa ser superado por meio de uma luta constante, em que, muitas vezes, o ser humano, mesmo após seu falecimento, sua para superar o limbo existencial, para desfrutar da vida eterna com os bravos lutadores. Nesse momento, o temor da morte começa a ser evidenciado, pois prestar contas da sua vida a um outro é penoso.
No Cristianismo
O homem não descansa para morrer, pelo contrário, batalha para ter um lugar no reino dos céus. A religião cristã é um bom exemplo desse trânsito. O ser divino se dispõe a mostrar o caminho, que é conquistado com muito sofrimento e dor. Ele vence a morte da carne e promete a vida eterna. Aqui, os opostos não dialogam, eles se chocam e brigam pelo lugar de destaque. Não há convivência, ou você é condenado à morte interminável ou libertado para uma vida perene.
Em determinadas religiões, no pós-morte, a alma espera o momento da reencarnação. Ela aguarda uma nova oportunidade para habitar neste mundo, em um outro corpo físico. Em outras religiões, sustenta-se exatamente o contrário: a experiência humana é realizada somente uma única vez. As ações do indivíduo, no plano físico, serão determinantes para um pós-morte de bem-aventuranças ou de maldições.
Na Contemporaneidade/atualidade
Basta olhar em volta, em nossa contemporaneidade: a morte está cada vez mais distante, é escondida por muitos, ela não é celebrada, os rituais de sepultamento são breves ou inexistentes, a “máquina” humana não pode parar, precisa produzir e produzir mais e mais, não havendo espaço para o sofrimento, o luto da perda. A ciência e a tecnologia têm avançado no sentido da prevenção da morte. Buscam-se meios de se evitar as doenças, os acidentes fatais, os suicídios ou os homicídios. Deste modo, objetiva-se o prolongamento da vida.
A sociedade moderna expulsa a morte da sociedade e o desaparecimento de um indivíduo não afeta a continuidade de seu grupo social. A rotina não muda e a cidade não desacelera. Assim, aos poucos, o distanciamento da morte torna-se cada vez maior. O que era familiar na Idade Média, torna-se proibido e reprimido no mundo contemporâneo ocidental.
Meditar a Morte
Atualmente, morrer não é mais considerado um processo natural. O fim da vida, deixou de ser um evento compartilhado nas relações humanas, para se tornar um momento interditado e solitário. Ela é interpretada como uma derrota, tanto para a equipe médica, quanto para os familiares, e, por essa razão, todos devem lutar insistentemente para a sobrevivência do moribundo, afinal de contas, a morte é a representação de falha humana.
Existe um repúdio de diversos pesquisadores contra o tema “morte” pois, geralmente, associa-se ao fracasso humano, que ideal e culturalmente busca, por meio da tecnologia de medicamentos e intervenções médicas, a imortalidade. Tal tema, considerado tabu e proibido na atualidade não é abordado nos espaços escolares e hospitalares como um tópico relevante.
A morte ainda é um tabu nas instituições. É fundamental propor uma educação para a morte, por meio de autorreflexão e autoconhecimento, compartilhados como ferramentas possíveis para os questionamentos e a elaboração dos sujeitos sobre este assunto.
Sem perspectivas de respostas prontas e padronizadas, a ideia é criar um espaço de comunicação entre esses sujeitos, a fim de estimular a interação dos envolvidos. O papel do educador/profissional especializado como mediador é essencial para o acolhimento das angústias experimentadas por eles. A formação pessoal é imprescindível para estes formadores, pois muitos também entendem a morte como um assunto de difícil aceitação e compreensão.
A apresentação de textos produzidos nas diversas áreas do conhecimento sobre a morte e o morrer, bem como as experiências pessoais sobre este tema, podem auxiliar nas dinâmicas de aprendizagem.
O ser humano convive com a angústia de ser finito enquanto passado e futuro. Vida e morte se entrelaçam no constante começar e terminar, surgir e desaparecer do instante que já não existe. Meditar a morte é meditar a vida.
Carlos Eduardo Santos Cardozo: Psicólogo Clínico e Professor Universitário. Mestre em Educação. Atua como psicogerontologista na Vila Vida.
Referências bibliográficas:
CARDOZO, Carlos Eduardo Santos. O estudante de gerontologia e a sua percepção frente à complexidade vida/morte e morte/vida. 2021. 115 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Nove de Julho, 2021.
CARDOZO, Carlos Eduardo Santos. Educação para a morte: uma necessidade dispensável? Saberes docentes e formação profissional [livro eletrônico]: currículo, práticas e tecnologias. Maringá, PR: Uniedusul, 2021, Cap. 3 p. 31-40. DOI 10.51324/86010756.3.
QUINTANA, Mario. A rua dos cataventos. 2. ed. São Paulo: Globo, 2005. (Coleção Mario Quintana).
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Excelente reflexão! Precisamos falar da morte…
É diferente se ver a morte trágica pela morte filosófica.
Texto muito interessante.
Ótimo Tema!
Precisamos falar mais sobre a morte, ela não deve ser vista como um tabu na sociedade.
lido diariamente com a morte há alguns anos e ainda é muito difícil… obrigada Carlos pela reflexão!
A morte, única certeza que temos na vida, porém muitos não aceitam…Devemos discutir mais o tema, tratar de forma mais natural.
Li uma frase que dizia “desde o instante que se nasce, já se começa a morrer” (Cassiano Ricardo), se aprendessemos que a morte é algo natural, o significado dela teria muito mais sentido. É um assunto que culturalmente nos foi passado como um processo dolorido.
Excelente texto, ainda é um grande tabu falar sobre a morte.
Excelente conteúdo